Caroline Pagès – Miguel Palma + Elisa Pône

O sono invertido da modernidade

Imaginemos um diálogo no sono materializado no desdobramento de idiossincrasias criativas. A imersão nesse estado de desprendimento do real onde a sedimentação de uma memória digitalizada se ancora não numa livre associação de ideias reminiscente da aventura surreal, mas na incapacidade de manipular de forma coerente um excesso de informação e uma angústia perante o apelo à acção.
O diálogo de Elisa Pône e Miguel Palma que agora se apresenta desenha-se, então, nos interstícios do entendimento. Como fluxo de um processo de contínuo apagamento e reescrita de uma realidade interpretada. Ambos radicam num questionamento tenso de prerrogativas de uma modernidade que se arrasta como sombra inevitável de um pensamento errático e descontínuo.
A eficácia moderna, com os seus quesitos de racionalidade, velocidade e universalidade, desabrochou num estado de vigília permanente, onde a tal memória digitalizada emerge como oxímoro: a informação integral e a ignorância deslumbrada dançam em rodopios macabros.
Como actores num enredo sem guião, Pône e Palma atravessam as clareiras da certeza com uma inteligência formal disruptiva.
Nos seus trabalhos reverberam intra-histórias de um tempo de certezas, de um tempo de uma vigília esclarecida, embora esse estado de alerta sempre tenha despoletado as maiores catástrofes sociais e políticas. Como antídoto possível, o sono. Como consequência lateral, o sonho.
O universo de Pône é habitado por contradições e sobreposições de significado: nas formas geométricas de uma racionalidade bauhausiana, a artista introduz o informe pirotécnico, num sedutor jogo de controlo da transparência e posterior libertação da cor.
As esculturas são campos de recolhimento de uma figuração inquietante pela sua ausência. Sobre o conforto de camas-pedestais, repousam estranhos objectos de manufactura artesanal. Uma rede de descanso com pedras e um pequeno quarto induzem uma sensação de desconfiança perante esse putativo conforto. Imagens sonâmbulas, como que retiradas de um molde falhado da realidade.
Os seus cartazes constituem tergiversações anagramáticas de títulos de filmes clássicos onde a figura do zombie era protagonista. Deslocamento hermenêutico indutor de estranheza e distanciamento.
Já Miguel Palma vem sublinhar essa estranheza com duas esculturas-assemblagens, onde os verbos se conjugam em tempos discrepantes e criam um novo e perturbador léxico. De um (neo) colonialismo mal resolvido ao constante nervosismo perante uma ruptura nuclear, por exemplo, aqui o sono da modernidade pode converter-se em pesadelo contemporâneo.
Os seus desenhos, aqui em forma de múltiplos, reivindicam uma sobreposição de olhares sobre a felicidade moderna (por via dos seus mecanismos tecnológicos) transformada em rasuras e ocultações. Temos o mapa mas não vislumbramos o caminho.
Ainda bem que existem os artistas, concluir-se-á. Sejam seus os privilégios da associação livre, do delírio cognitivo, da perscrutação dos infindáveis remorsos da vida inviabilizada e da formalização perturbante: na certeza da impossibilidade de confirmação wikipédiana.